“A doença que aproxima e afasta as pessoas”. Foi assim que uma menina de 10 anos, da região metropolitana de Belo Horizonte, revelou o que sente com a pandemia. Ela faz parte da pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que analisa as experiências de crianças em tempos de pandemia do novo coronavírus. Foram 2.200 participantes de 8 a 12 anos. Entre os resultados dos estudos, percepções sobre a vivência familiar, mas, sobretudo, a evidência de que as desigualdades se aprofundam, deixando crianças ainda mais vulneráveis.
“As crianças estão sofrendo, sofrendo pela ausência de escola, pela mudança do seu cotidiano, pela mudança no seu contexto de relações, pela experiência subjetiva de lidar com a incerteza, com o medo de adoecimento, mas a gente observa que há uma desigualdade na forma de vivenciar essa experiência. Esse é um elemento muito importante”, explica Isabel de Oliveira, professora da Faculdade de Educação da UFMG e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Infância e Educação Infantil (Nepei).
Ela cita como exemplo o acesso à escolarização. Ao analisar o uso de computador, tablet, celular ou internet em casa, viu-se que mais crianças que se autodeclararam brancas afirmaram ter acesso a essas ferramentas do que as pardas e as pretas. Entre as que não têm acesso à internet, 11,1% moram em territórios de alta vulnerabilidade. O mesmo ocorre com o acesso ao celular: 11,6%.
A pesquisa foi desenvolvida por meio de um questionário online entre os dias 11 de junho e 15 de julho de 2020, com perguntas abertas e fechadas. Além disso, as crianças puderam enviar desenhos, fotografias e mensagens. Na segunda fase, entre agosto e dezembro, foram feitas entrevistas com 33 dos voluntários que participaram na primeira etapa.
Isabel explica que é fundamental ouvir as crianças, inclusive, para formulação de políticas que respondam a essas vivências. A prática é comum no Nepei e parte do reconhecimento de que elas podem e devem se posicionar, mas também o reconhecimento de um direito. “Já está previsto legalmente. Então entendemos que era nosso papel buscar ouvir”, aponta. O estudo, a partir da escuta das crianças, definiu recomendações para o Poder Público e a sociedade no atendimento desse público na pandemia. Uma delas é, justamente, ouvi-las.
O trabalho revelou que as crianças têm um conhecimento apurado sobre os significados da pandemia, demonstrando, por exemplo, saber sobre a importância do isolamento. A solidariedade intergeracional também foi uma marca encontrada. “Em geral, elas tinham essa compreensão de que o maior risco era para as gerações mais velhas e elas diziam então que elas tinham o dever, a responsabilidade de aderir ao isolamento social em função da proteção dessas pessoas mais velhas”, aponta a pesquisadora.
A vivência de angústias e medos também apareceram entre as respostas. “Elas se viram mais confrontadas com temas que não necessariamente faziam parte dos assuntos com os quais elas se envolviam, como o tema da morte, o tema do adoecimento, o medo da morte de pessoas próximas, medo de ficarem sozinhas”, explica Isabel. Em contraponto, as crianças demonstraram a capacidade de desenvolver estratégias de aprendizados e a valorização da convivência familiar.
Entre as recomendações, além do exercício de escutar as crianças para desenvolver políticas públicas e pedagógicas, Isabel destaca a necessidade de considerar as desigualdades reveladas. “É preciso considerar que as mudanças na experiência cotidiana aconteceram para todas as crianças, mas a forma como isso acontece é muito diferente considerando a condição social e que há entre as crianças situações de ainda maior vulnerabilidade do que aquela que já existia.”
A professora reforça ainda a importância de que essas vivências na pandemia sejam observadas no retorno às aulas. “Precisa olhar essa criança e não o conteúdo eventualmente perdido. Que criança é essa que volta agora e com a qual a gente vai voltar a trabalhar?”, questiona. Ela cita como exemplo as possíveis perdas de familiares e adoecimentos. Ainda nos casos em que permanece o ensino remoto, a pesquisadora aponta que não se deve buscar uma reprodução do modelo presencial.
Mais de 80% das crianças ouvidas estavam preocupadas com a ausência na escola. “A falta da escola revelou o quanto esse espaço é importante para as crianças. Nós tivemos um número baixíssimo de crianças que falaram: ‘Melhor é não ir pra escola’." Além do local de ensino, a escola é relatada como o espaço e sociabilidade, do encontro com os amigos e da aprendizagem conjunta.
“Não é um funcionamento que separa o cognitivo do restante. A gente já sabe disso teoricamente, mas foi interessante ouvir isso das próprias crianças. A condição delas de aprendizagem do conteúdo precisa ser de forma integral, considerando saúde física, emocional, suas condições e relações sociais”.
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