O governo federal espera que a PEC dos Precatórios (Proposta de Emenda Constitucional 23/2021) seja votada na próxima terça-feira (30) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Segundo o governo, a proposta criará espaço fiscal para o pagamento do Auxílio Brasil por meio da mudança no cálculo do teto de gastos e de um novo regime para o pagamento de precatórios. Mas uma das principais causas da resistência enfrentada pelo texto no Senado é a ausência de especificação do destino do valor restante após o pagamento do auxílio.
A PEC foi enviado pelo Executivo em agosto e aprovada no último dia 9 pela Câmara dos Deputados.
O relator da proposta no Senado é Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), líder do governo na Casa. Ele afirmou que ainda há "pontos que encontram resistências", sobretudo a dúvida dos senadores em relação ao tamanho do espaço fiscal a ser aberto pela PEC, e como poderia ser utilizado um eventual excesso. Apesar disso, ele se disse otimista em relação à aprovação da proposta pela comissão na terça-feira.
— O relatório que foi lido na última reunião da CCJ já avançou, no sentido de fazer a vinculação do espaço fiscal com as despesas na área de assistência social — declarou.
Segundo Bezerra, o Auxílio Brasil chegará a 17 milhões de famílias, em vez das 14,6 milhões atuais, o que permitiria ao governo "zerar" a fila de candidatos ao auxílio inscritos no Cadastro Único — seriam 50 milhões de pessoas beneficiadas com um piso de R$ 400. Hoje o benefício médio é de R$ 224,41, contra os R$ 186,68 do Bolsa Família.
O líder do governo analisou analisou 40 emendas apresentadas por senadores, acolhendo 13. Em seu relatório, ele argumenta que a PEC “amenizará as agruras financeiras atuais de contingente expressivo da população, impactando positivamente na redução da desigualdade de renda, que é um problema observado no país há longo tempo”.
Bezerra avalia que o texto traz regras fiscais que não impactam significativamente o endividamento da União. Ele cita cálculos do governo segundo os quais as dívidas, hoje estimadas em 80,8% do Produto Interno Bruto (PIB) para 2021 (em 2020 o PIB foi de R$ 7,4 trilhões), chegariam a 81%. Segundo ele, isso representa um aumento muito pequeno, o que preservaria a confiança dos mercados de que a dívida pública não irá disparar. Essa confiança, ressaltou o senador, é fundamental para que não se perca o controle da inflação, o que poria a perder o aumento dos benefícios.
Por outro lado, o governo federal estima que, sem a PEC, a despesa com precatórios seria de R$ 89,1 bilhões em 2022, ou 0,95% do PIB projetado para o ano que vem, um aumento de 78,7% em relação ao total pago em 2020 (R$ 49,9 bilhões) e de 60,2% sobre o valor de 2021 (R$ 55,6 bilhões). Em 2010 foram pagos R$ 14,3 bilhões com o cumprimento de sentenças judiciais, ou 0,35% do PIB daquele ano. Por essa razão, argumenta Bezerra, é preciso impor um limite a esses gastos, sob pena de comprometer as políticas sociais.
Uma das mais polêmicas alterações da PEC dos Precatórios é a mudança do cálculo do limite das despesas primárias da União, o chamado teto de gastos, criado em 2016 e previsto para terminar em 2036, como parte da legislação conhecida como Novo Regime Fiscal.
A despesa primária é o total das despesas menos os juros da dívida pública. São os gastos com saúde, educação, segurança pública, aposentadorias, assistência social, obras, servidores e outros para custear a máquina pública. Atualmente a Constituição manda calcular o limite de gastos do Orçamento corrigindo o teto do ano anterior pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulado de julho a junho. A proposta aprovada pela Câmara define que a correção deva ser feita usando o IPCA acumulado de janeiro a dezembro. Como a lei orçamentária é elaborada normalmente antes do fim do ano, pela PEC o cálculo levaria em conta a inflação efetivamente apurada de janeiro a junho e a estimada para os meses de julho a dezembro pelo Executivo.
Em função das novas previsões para a inflação, em 22 de novembro o Ministério da Economia revisou o cálculo do teto de gastos para 2022 pelo novo método, concluindo que, com a PEC dos Precatórios, o governo poderá gastar no ano que vem R$ 106,1 bilhões a mais do que poderia com a legislação atual, incluindo R$ 43,8 bilhões obtidos com a redução do pagamento dos precatórios. Quando enviou o texto, o Executivo estimava, respectivamente, R$ 91,6 bilhões e R$ 44,6 bilhões para esses dois valores.
Bezerra defende que o cálculo do teto deva ser feito da mesma forma que o cálculo do reajuste do salário mínimo. Hoje, aponta ele, o teto é fixado antes de se conhecer com exatidão o valor das despesas vinculadas ao mínimo (aposentadorias, abono salarial e benefícios assistenciais). O novo cálculo do teto de gastos deve valer inclusive para 2021, desde que o aumento do limite seja de até R$ 15 bilhões e destinado à vacinação contra a covid-19 e a ações sociais emergenciais e temporárias. Os R$ 15 bilhões deverão vir de créditos extraordinários baseados em novos empréstimos, que não estarão sujeitos à chamada “regra de ouro”. Essa norma impede que a União faça novas dívidas para pagar despesas de custeio. Hoje a Constituição só permite a abertura de crédito extraordinário para pagar despesas imprevisíveis e urgentes, como as de uma guerra, comoção interna ou calamidade pública.
Com o novo método, a PEC prevê que o Executivo informe mensalmente à Comissão Mista de Orçamento (CMO) do Congresso a estimativa da correção do teto de gastos de acordo com as projeções para o IPCA, além de comunicar ao Judiciário e ao Legislativo a diferença entre as estimativas e as taxas de inflação efetivamente apuradas.
Em seu relatório, Bezerra excluiu item da PEC que determinava que só seriam admitidas emendas ao Orçamento anual, para a correção de erros ou omissões em despesas obrigatórias, se essas emendas visassem incorporar o impacto da variação entre a estimativa e a taxa de inflação efetivamente apurada, ou uma nova legislação sobre essas despesas. Ele considerou que esse item feria a competência do Congresso para propor emendas ao Orçamento.
A PEC também prevê a revogação do artigo da Constituição que permite fazer por lei complementar, a partir do décimo ano do Novo Regime Fiscal, a alteração do cálculo do limite das despesas. Portanto, uma nova norma teria necessariamente de ser feita por meio de emenda à Constituição.
Uma das principais causas da resistência enfrentada pela PEC no Senado é a ausência de especificação do destino do valor restante após o pagamento do Auxílio Brasil de R$ 400 mensais em 2022. Bezerra pretende resolver o impasse com uma emenda determinando que o dinheiro seja gasto apenas em programas sociais, principalmente o Auxílio Brasil, nas áreas da saúde e previdência, e com repasses aos demais poderes.
O relator propõe ainda transformar o Auxílio Brasil em um programa permanente, dentro da Constituição, sem, no entanto, definir como ele será financiado a partir de 2023. Além disso, foi explicitado no texto da PEC que a política de assistência social deve ter como objetivo reduzir a pobreza. Para atender a esse objetivo, o senador incluiu na proposta um item obrigando o Congresso a criar, até 31 de dezembro de 2022, uma lei definindo limites, condições e normas de acesso ao benefício. Essa lei estaria dispensada dos limites para aumento das despesas obrigatórias previstos na legislação atual.
Outra novidade bastante controversa do texto é que, até o fim do Novo Regime Fiscal, em 2036, haverá um limite para os recursos que poderão ser usados para pagar precatórios e requisições de pequeno valor. Esse limite será o valor pago em 2016 corrigido anualmente pelo IPCA, da mesma forma como seria feito o novo cálculo do teto de gastos. Enquanto precatórios são dívidas da União, estados, municípios e Distrito Federal — os entes federativos — determinadas por sentença judicial definitiva, as requisições de pequeno valor são dívidas de até 60 salários mínimos também decorrentes de sentenças judiciais e têm preferência sobre os precatórios na ordem de pagamento.
De acordo com a Consultoria de Orçamentos do Senado, o limite e o adiamento do pagamento dos precatórios propostos pelo Executivo poderão gerar pendências da ordem de R$ 1,2 trilhão, em 2036, se as expectativas do mercado para a inflação (monitoradas pelo Boletim Focus do Banco Central) se confirmarem. Mesmo no cenário mais otimista, em números atuais, esse estoque de precatórios não pagos pode chegar a R$ 348,4 bilhões.
Os gastos com o pagamento das parcelas seguintes dos precatórios considerados "altos", de valor igual ou superior a 15% de todo o gasto do ano com esse tipo de dívida, estão fora desse limite. Pelas regras atuais, os credores desses precatórios recebem 15% do valor no primeiro ano e o restante nos cinco anos seguintes em parcelas iguais. Foram excluídos ainda do limite a atualização monetária dos precatórios e requisições de pequeno valor a serem pagos durante o ano, mas essa atualização continua dentro do teto geral de gastos.
O uso de precatórios na compra de imóveis públicos do ente devedor e na compensação de dívidas com a União também fica fora do limite e do teto de gastos.
Em outra alteração que fez no texto da PEC, Bezerra estabeleceu 2 de abril como data para inclusão dos precatórios no Orçamento da União. Hoje são incluídos aqueles apresentados pelo Judiciário até 1º de julho. Ele argumenta que, dessa forma, o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLOA), que deve ser enviado pelo Executivo até 15 de abril, já poderia incluir uma previsão do risco fiscal e do valor a ser pago.
Essas alterações no regime de pagamento valeriam para todos os precatórios já expedidos e incluídos nos Orçamentos de 2022 em diante.
A Emenda Constitucional 109, de 2021, obrigou estados e municípios que em 25 de março de 2015 estavam em atraso com o pagamento de seus precatórios a quitá-los até 31 de dezembro de 2029, tanto os vencidos em 2015 quanto os que vencessem nesse período, atualizados pelo IPCA. A norma permitiu aos entes federativos contratar empréstimos para pagar essas despesas. O texto da PEC permite que esses empréstimos sejam destinados, por ato do Poder Executivo, exclusivamente ao pagamento de precatórios por acordo direto com os credores.
A PEC ainda define que o pagamento dos precatórios que a União deve a estados e municípios relacionados ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), as maiores dívidas a serem liquidadas em 2022, tem prioridade sobre o dos demais precatórios, excetuadas as prioridades já existentes. Um dos objetivos é não prejudicar o pagamento de abonos salariais a professores, que depende desses recursos.
Outro item polêmico da PEC obriga o credor privado a depositar em juízo o valor de todos os débitos inscritos em dívida ativa que possua com o ente federativo que lhe deve o precatório. Caberá ao tribunal decidir, havendo sentença definitiva em favor do credor, se será feita a compensação entre o débito depositado em juízo e o crédito ganho na Justiça.
A dívida ativa é uma base de dados que governos municipais, estaduais e federal usam para inscrever pessoas físicas e empresas que devem impostos, taxas, multas e contas de água e luz, entre outros.
Bezerra argumenta que a compensação de débitos e créditos reduz o pagamento de despesa com sentenças judiciais, aumentando o espaço fiscal para outras despesas.
O Supremo Tribunal Federal (STF), porém, já julgou inconstitucional a compensação entre os débitos da dívida ativa e os créditos dos precatórios, argumentando que isso fere os direitos do credor na ação judicial. Os críticos da PEC argumentam que o dispositivo seria, portanto, inconstitucional.
A PEC também autoriza acordos para um encontro de contas entre os débitos dos entes federativos com a União e os repasses de valores de precatórios que esta deva fazer aos Fundos de Participação de Estados e Municípios. A Constituição hoje não prevê essa imposição, proibindo a União de condicionar o pagamento de precatórios a estados, municípios e Distrito Federal, exceto para compensar com seus próprios precatórios contra o ente federativo.
A proposta autoriza ainda os entes federativos a usarem os precatórios devidos a outro ente para amortizar suas dívidas com o mesmo ente nos contratos de refinanciamento de dívidas não tributárias; de prestação de garantia; nos parcelamentos de tributos ou de contribuições sociais; e nas dívidas decorrentes do descumprimento de prestação de contas ou de desvio de recursos. Essa possibilidade não existe nas normas atuais.
Pela PEC, o credor de precatórios poderá oferecê-los para quitar débitos parcelados ou inscritos em dívida ativa do ente federativo devedor; comprar imóveis públicos do mesmo ente; pagar outorga de serviços públicos; comprar ações de empresas públicas; e também para pagar pela cessão de direitos feita pelo poder público. Pela legislação atual, o credor só pode usar os precatórios para comprar imóveis do governo.
Uma das novidades do relatório de Fernando Bezerra, para atender a pedidos de senadores, é a previsão de que o Congresso crie uma comissão mista para avaliar tanto as causas dos processos judiciais que deram origem aos precatórios quanto a a atuação do governo nesses casos. O colegiado deverá atuar em cooperação com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), podendo requisitar informações e documentos de qualquer órgão público. Depois de concluídos os trabalhos, os resultados deverão ser encaminhados aos órgãos competentes.
A PEC ainda permite excepcionalmente o parcelamento dos débitos previdenciários dos municípios com os sistemas de previdência exclusivos dos seus servidores que tenham vencido até 31 de outubro de 2021, inclusive os que já sofreram parcelamento. Os valores deverão ser pagos em até 240 meses, desde que autorizados por uma lei municipal específica.
Para usufruírem do benefício, a proposta determina que os municípios terão de comprovar que as regras dos seus sistemas de previdência são semelhantes às do regime próprio de previdência social da União. Será necessário adotar regras iguais às que valem para os servidores da União para o acesso a aposentadorias e pensões, o cálculo e reajuste dos benefícios.
Bezerra cita cálculo da Confederação Nacional dos Municípios, segundo o qual a dívida previdenciária dos municípios com o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) cairia de R$ 104 bilhões para R$ 67,7 bilhões com o perdão de juros e multas, aliviando o caixa desses municípios.
O texto autoriza também o parcelamento dos débitos previdenciários dos municípios com o RGPS vencidos até 31 de outubro, mesmo aqueles em fase de execução fiscal e os parcelados anteriormente, também no prazo máximo de 240 meses.
O texto da PEC aprovado na Câmara permite que os entes federativos emitam títulos lastreados nos valores a receber com a arrecadação de impostos atrasados. É a chamada "securitização de recebíveis".
Esses títulos, no entanto, estariam restritos aos débitos de impostos inscritos na dívida ativa em data anterior à da securitização e classificados pelo respectivo órgão de cobrança como "de difícil recuperação".
Alguns especialistas apontam que, na prática, a receita de impostos vinculados (ou seja, com destinação específica prevista na Constituição, como saúde e educação) proveniente de devedores inscritos na dívida ativa acabaria indo diretamente para o pagamento desses títulos, sem passar pelo Orçamento, deixando, assim, de ser aplicada na sua destinação constitucional (como saúde e educação).
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