Uma economia sustentável, calcada na sociobiodiversidade, tem como entraves a falta de políticas públicas de incentivo e o desmonte dos órgãos de defesa do meio ambiente e de defesa dos povos tradicionais. Esse foi o alerta feito por especialistas e senadores que participaram, nesta quarta-feira (22), de audiência pública da Comissão de Meio Ambiente (CMA) sobre o tema.
O senador Fabiano Contarato (PT-ES), responsável por coordenar o debate, manifestou preocupação com o atual momento político e social pelo qual passa o Brasil. Para ele, há uma demonstração de interesse claro do governo Bolsonaro em exterminar as populações indígenas e invadir seus territórios, dificultando o desenvolvimento de atividades de extração, produção e progresso da economia da sociobiodiversidade.
— Os povos tradicionais, as comunidades tradicionais, comunidades quilombolas, comunidades indígenas que são verdadeiros defensores do meio ambiente, eles estão fazendo o papel do Estado, mas estão sendo dizimados, não tem outra palavra. Estão sendo dizimados com políticas antiambientalistas, antivida, porque defender meio ambiente é defender toda a qualquer forma de vida — declarou.
A crítica foi reforçada pelo autor do requerimento para realização da audiência pública, senador Jaques Wagner (PT-BA), que preside a CMA. O senador afirmou que "os povos tradicionais estão sendo golpeados todos os dias por um governo da morte".
A professora e pesquisadora da UnB, Mônica Nogueira explicou que a principal característica dessa economia sustentável é a relação de interdependência entre a diversidade biológica e a diversidade de sistemas socioculturais de uma região. Dessa relação, explicou, resultam bens e serviços, matérias primas ou benefícios, gerados a partir de recursos dessa biodiversidade que tem cada vez mais ganhado valor, internacionalmente, por sua sustentabilidade. Exemplos disso são os modos de produção e de vida de povos indígenas, comunidades quilombolas, comunidades tradicionais diversas, como geraizeiros (população do norte de Minas Gerais), ribeirinhos, extrativistas da Amazônia, quebradeiras de coco, catadoras de mangaba entre outros.
No entanto, o que a especialista classificou de “economia da vida para a vida” enfrenta como principais entraves, segundo ela, o acesso à terra, a insegurança dos povos tradicionais e o apagão de dados.
— Nós temos uma fragmentação, uma dispersão das informações relativas a povos e comunidades tradicionais no Brasil, seus territórios, os conflitos a que estão submetidos. E, ainda mais, sobre o que produzem, como a sua produção circula, como ela dinamiza a economia local, quando ela alcança ciclos, em que circunstâncias se alcançam os ciclos longos de comercialização, o quanto gera de renda, como incide também na segurança alimentar dessas famílias e das famílias que afinal consomem também esses produtos. O apagão de informação naturalmente dificulta a elaboração de políticas públicas apropriadas que considerem as especificidades da economia da sociobiodiversidade. E pior, marginaliza essa economia e os seus sujeitos. Então há algo como uma sugestão de que esse apagão de informação é também intencional, dificultando enormemente que essa economia realmente componha a estratégia de desenvolvimento do Brasil — disse Mônica Nogueira.
Para o secretário geral do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), Dione do Nascimento Torquato, não se pode falar de economia da sociobiodiversidade se não trabalhar pela preservação e proteção dos territórios tradicionais de uso coletivo, pela valorização do modo de vida dos guardiões da floresta, do campo e das águas. Ele classificou o atual momento como “sombrio” e desfavorável a agenda ambiental, o que, na sua visão, tem gerado aumento dos conflitos territoriais fundiários, morte de lideranças ativistas no campo e a invasão massiva desses territórios, em especial, as reservas extrativistas e os territórios indígenas.
Sem olhar para essa questão, avalia Dione Torquato, torna-se difícil fazer com que a economia da sociobiodiversidade assuma o papel, inclusive, de combate a fome e a pobreza.
— O país precisa de uma solução urgente viável. Não podemos excluir historicamente aqueles que já são oprimidos. E não podemos criminalizar aqueles que já são vistos como vulneráveis. Fortalecer a economia da sociobiodiversidade por meio de políticas públicas como o PAA, PNAE, PGMbio, é uma forma de garantir a floresta em pé, fortalecendo o processo de gestão e governança territorial e a valorização sociocultural — defendeu, referindo-se ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e à Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio).
O pesquisador e especialista sobre socibiodiversidade, Ricardo Abramovay que dirigiu, com mais dez pesquisadores, inclusive da Embrapa, um capítulo para o painel científico para a Amazônia no âmbito das Nações Unidas, disse que os mercados da sociobiodiversidade são muito incompletos e imperfeitos no Brasil. Para ele, é preciso organizar toda a cadeia, munir de infraestrutura as regiões de floresta, como no caso da Amazônia e do Cerrado, e investir no conhecimento científico e tecnológico da natureza de forma sustentável.
— Nós precisamos para que esse empreendedorismo seja fortalecido rediscutirmos a questão da infraestrutura da Amazônia. A infraestrutura para uso sustentável socioambiental florestal exige internet de qualidade, energia, mobilidade, industrialização local dos produtos da sociobiodiversidade florestal e, sobretudo, condições de vida digna para os povos que exploram essa sociobiodiversidade — argumentou Abramovay.
Ele ainda alertou para o fato de que essa cadeia precisa envolver os grandes centros como mercado consumidor, o que é quase inexistente no Brasil.
— Dos 374 empreendimentos comunitários analisados em 2020 pela Conexos, apenas 20% processam e beneficiam seus produtos. Nós precisamos incrementar esse beneficiamento. A consequência disso é que Belém é uma cidade em que dois terços da alimentação vem de outras regiões do país. Quando poderiam ser produzidos localmente — acrescentou.
A mesma observação foi feita pelo coordenador do Instituto Socioambiental (ISA) e Membro do ÓSocioBio, Jeferson Straatmann. Ele defendeu a inovação por meio da valorização da economia da sociobidiversidade, mantendo a floresta em pé.
— São economias que produzem muito mais que insumos para as empresas, a gente precisa sair dessa lógica de provedores de insumos para a lógica de economias que inovam a partir do conhecimento tradicional. São desenvolvedoras de tecnologias e soluções para a saúde, moda, alimentação, governança e gestão territorial, modelos econômicos, manejo e são prestadoras de serviço e entregam benefícios ecossistêmicos para todo o planeta — afirmou.
Dionete Figueiredo, que é agricultora familiar e administra a cooperativa Copabase, relatou as dificuldades enfrentadas por essas comunidades na produção, extração e oferta dos seus produtos no mercado. Com a experiência de auxiliar 300 famílias que trabalham com o extrativismo sustentável da castanha de baru, em Minas Gerais, ela lamentou a falta de políticas públicas que possibilitem fácil acesso ao crédito, assistência técnica e ações governamentais menos burocráticas de compra desses produtos.
— Porque às vezes a gente tem um avanço em mostrar que o Baru é um produto único no mundo. E aí lá fora as pessoas querem comprar, mas não temos aqui os meios para organizar essa produção, para ajudar a esses extrativistas a se capacitarem. A entenderem esse processo de regras sanitárias, eles não entendem nada disso. Eles não sabem que não podem usar o saco de ração porque eles são acostumados, e eles compram ração para colocar um produto que é agroecológico, que é da sociobiodiversidade e a gente, num esforço, com o apoio de várias organizações, tenta manter uma equipe de técnicos multidisciplinares para fazer esse trabalho de apoio aos agricultores, as comunidades, aos quilombolas. Ajudá-los na gestão dos processos, na organização de tanta burocracia de nota fiscal, de logística, é combustível que sobe todo dia e aí a gente já nem sabe mais como segura as planilhas de custo. E o mercado é cruel, ele não dá espaço para erro — detalhou.
De acordo com Dionete Figueiredo, a cooperativa movimentou no ano passado quase 17 toneladas de castanha de baru, e 50% dessa produção foi consumida pelo mercado nacional.