A proposta de emenda à Constituição que permite a nomeação de parlamentares para o cargo de embaixador sem que ocorra perda de mandato (PEC 34/2021) foi criticada nesta terça-feira (5) por senadores e debatedores. Eles manifestaram preocupação com os efeitos dessa medida para a política externa brasileira, e citaram como um de seus riscos o conflito entre interesses nacionais e motivações políticas e paroquiais, além de possíveis questionamentos quanto à constitucionalidade da proposta.
Essas críticas foram feitas durante audiência pública promovida pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado.
Apresentada pelo senador Davi Alcolumbre (União-AP), a PEC 34/2021 está em análise na CCJ, onde é relatada pela senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB). Atualmente, a Constituição prevê a manutenção do mandato parlamentar quando deputados federais ou senadores estiverem chefiando missão diplomática temporária. Mas, para exercer o cargo de embaixador (missão diplomática permanente), o parlamentar tem de abandonar seu mandato.
A senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP) afirmou que a representação diplomática permanente vem sendo exercida com maestria por profissionais que são submetidos a um dos concursos públicos mais rigorosos do país, e que seu trabalho se caracteriza por rígida hierarquia e é organizado em carreiras. Na sua avaliação, a submissão desses profissionais a um constante processo de capacitação “demarcou uma histórica credibilidade nas relações diplomáticas do Brasil” — o que poderia ser alterado, segundo ela, caso a PEC venha a ser aprovada.
— É preciso estarmos atentos a um fato: a gente não pode misturar interesse político-eleitoral e políticas de governo com política de Estado. A tradição brasileira herdada desde os tempos do avô da nossa diplomacia, que era o Alexandre de Gusmão, e segmentada pelo nosso patrono, Barão do Rio Branco, é de uma política de Estado que exige pragmatismo e racionalidade. E a PEC 34/2021 parece ir na contramão desses princípios (…). Muito nos preocupa um desequilíbrio nesse sistema, sobretudo diante do número expressivo de embaixadas brasileiras distribuídas pelo mundo que poderiam se tornar objeto de negociações pelo Executivo em busca de apoio político do Congresso Nacional — alertou Mara.
Para Mathias Alencastro, professor universitário e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a PEC tem o objetivo “decapitar a carreira de diplomata”.
— A embaixada é o destino das pessoas que entram na carreira da diplomacia. E essa lei ela sinaliza a todos que querem prestar concurso, que querem ser diplomatas, que a carreira não tem mais esse objetivo. Que é uma carreira muito mais burocrática do que política — avaliou ele.
Mathias criticou o trecho da justificativa da PEC que utiliza o termo “discriminação odiosa” para se referir à restrição prevista na Constituição aos parlamentares que se tornam embaixadores.
— Acho que usar esse termo no momento em que a sociedade brasileira está debatendo o racismo estrutural denota ou pode ser interpretado como uma manifestação da distância das prioridades dos parlamentares das prioridades da sociedade civil. Eu acho que isso é muito simbólico e mostra que talvez não seja o momento certo para isso — argumentou.
O senador Esperidião Amin (PP-SC) também criticou a PEC. Para ele, a iniciativa é inconstitucional por ferir o princípio da separação dos Poderes e possibilitar o enfraquecimento da linha hierárquica profissional no âmbito da diplomacia.
— Não vejo interesse público nela. Portanto, constitucionalmente e em termos de interesse público, acho que ela não atende à melhoria do serviço que se presta. Pelo contrário, tende a comprometer a qualidade. (…) Nos botecos do Brasil o que se comenta é que o objetivo dessa proposta é arrumar mais uma boquinha para o parlamentar — declarou o senador ao informar que votará contra a proposta.
Gilvânia Maria de Oliveira, diplomata e diretora do Instituto Rio Branco, representou o ministro das Relações Exteriores, Carlos França, durante a audiência. Ela concordou com uma das justificativas de Davi Alcolumbre para defender sua PEC: a de que os parlamentares reconhecem como poucos as principais demandas do país. Mas, por outro lado, Gilvância ressaltou que o Itamaraty considera problemáticos alguns aspectos da proposta no que se refere à sua constitucionalidade, como os eventuais conflitos relacionados à hierarquia.
— [Os parlamentares são] representantes altamente capacitados, que certamente acompanham temas da agenda internacional. No entanto, nós acreditamos, com todo respeito, que há papeis determinados na Constituição federal — destacou ela, acrescentando que os diplomatas têm um "papel como agentes, como ferramenta, como instrumento para implementar as políticas que são decididas, as instruções que nos são dadas por meio do ministro das Relações Exteriores, e que tem na sua origem o chefe do Executivo, com acompanhamento e monitoramento fundamental desta Casa".
Segundo Aloysio Nunes Ferreira, ex-ministro das Relações Exteriores, a carreira feita por meio da política permite acúmulo de experiências. No entanto, diferentemente do diplomata de carreira, um parlamentar não teria, segundo Aloysio, o mérito, conhecimento suficiente e a obediência hierárquica que o cargo de embaixador exige.
— Hoje um parlamentar, se fosse investido nessa função, sem se licenciar, poderia simplesmente desconsiderar uma determinação do presidente. E o que aconteceria com ele? Seria demitido da sua função e retornaria ao mandato. Já o diplomata, não. Teria seriíssimos prejuízos se porventura viesse a descumprir uma determinação, uma orientação da sua chefia — salientou.
Guilherme Stolle Paixão e Casarões, cientista político e professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, citou como possíveis consequências da aprovação da PEC 34/2021 o uso de embaixadas brasileiras no exterior para atender interesses paroquiais e o risco de se gerar imprevisibilidade na política externa do país.
— A gente sabe, esse é um dado da Nova República, que a governabilidade [no Brasil] está subordinada à distribuição de cargos a partidos ou a parlamentares aliados. A gente vê isso acontecendo nos governos; é um dado natural do nosso sistema político. Mas me preocupa muito pensar em embaixadas sendo utilizadas como moeda de troca num sistema de presidencialismo de coalizão. Isso, a meu ver, geraria uma banalização da representação brasileira no exterior, geraria problemas de inconstâncias. E traz um certo componente do "toma lá dá cá" que eu vejo como muito prejudicial em se tratando de política externa — avaliou Guilherme.
Segundo o deputado federal Marcelo Calero (PSD-RJ), que é diplomata e também já assumiu cargos nos Executivos federal e estadual, a PEC transmite à sociedade a “mensagem equivocada” de que o Brasil estaria fragilizando um dos seus maiores ativos em termos de função pública — a diplomacia. Segundo ele, este seria o momento de mostrar à sociedade que, independentemente de situações políticas, as carreiras de Estado serão preservadas em nome do interesse público.
— Para a chefia desse posto há uma série de funções e atribuições que são intrinsecamente incompatíveis com uma atividade política. Por exemplo: cabe ao chefe da missão diplomática [permanente] organizar as eleições no país onde ele está servindo. Então imaginemos um deputado federal que esteja licenciado do seu mandato e que enfrente uma eleição. Não podemos dizer que a condução daquele processo será isento, que será imparcial? Porque aquele deputado que está lá investido do cargo de embaixador, afinal de contas, é filiado a um partido; ele representa um recorte da sociedade em termos ideológicos — argumentou Calero.
Essa crítica foi reforçada pelo vice-presidente do conselho curador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), José Alfredo Graça Lima.
— Não é razoável que o chefe de missão diplomática permanente tenha compromissos com o Poder Legislativo, sob pena de desvirtuamento ao mesmo tempo da representação parlamentar e da diplomática — disse ele.
Ao criticar a PEC 34/2021, a presidente da Associação e Sindicato dos Diplomatas Brasileiros (ADB-Sindical), a embaixadora aposentada Maria Celina de Azevedo Rodrigues, observou que a proposta poderia abrir uma brecha para que outros ocupantes de mandatos questionem o princípio da isonomia. Ela citou como exemplo os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
— Por uma questão de isonomia, por que eles [os ministros do STF] não poderiam ser chefes de missão [diplomática permanente] também? Na base do "eu deixo meu mandato durante algum tempo, vou ali e volto já". (...) Isso é um conceito isonômico. Eles [os ministros do STF] não poderiam reclamar por esse tratamento também? — questionou ela.
Relatora da matéria, a senadora Daniella Ribeiro disse estar atenta ao debate e às contribuições de especialistas e diplomatas, visando à formulação do seu voto. Porém, ela lamentou a ausência do ministro Carlos França na audiência. E afirmou que, até o momento, não teve oportunidade de ouvir as considerações dele sobre a proposta.
— Desde que fui indicada como relatora não fui procurada presencialmente por parte do ministro, a não ser por um telefonema muito rápido (…). Tenho todo interesse de coletar, sim, o maior número de argumentos em defesa da diplomacia, e estou aberta para que a gente possa construir o melhor relatório possível em defesa da diplomacia — afirmou Daniella.
De acordo com o Itamaraty, o ministro não pôde participar do debate porque está em missão oficial no exterior.
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