Dois projetos que buscam regulamentar o serviço de vídeo sob demanda e a cobrança de Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) sobre o setor,discutidos em audiência pública da Comissão de Educação (CE)nesta quarta-feira (13),foram recebidos com ressalvas pelas operadoras de serviços de vídeo na internet. Enquanto representantes de produtores, governo e agência reguladora manifestaram apoio a medidas de financiamento de obras independentes e promoção de conteúdo nacional em plataformas de streaming, as empresas de distribuição de audiovisual apontaram falhas na abrangência e nos termos dos projetos em pauta sobre o tema.
O senador Humberto Costa (PT-PE) é autor do PL 1.994/2023 , que estabelece uma contribuição progressiva de até 4% sobre o faturamento bruto do provedor de serviços devídeo sob demanda (video on demand, ou VoD).Do senador Nelsinho Trad (PSD-MS), o PL 2.331/2022 também impõe uma Condecine de até 4%. Porém, o relator dos dois projetos na CE, senador Eduardo Gomes (PL-TO), emitiu parecer pela rejeição do PL 1.994/2023 e ofereceu emenda substitutiva ao PL 2.331/2022, com o objetivo de “contemplar a visão mais atual das demandas e realidades do setor”. Os projetos estão em análise na Comissão de Educação,presidida pelo senador Flávio Arns (PSB-PR).
A secretária do Audiovisual do Ministério da Cultura, Joelma Oliveira Gonzaga,expôs na audiência pública o posicionamento da pasta sobre a definição de produção brasileira independente, visando preservar o direito de as empresas participarem do resultado de suas obras e distribuí-las para terceiros. Conforme pontuou, não é aceitável que o produtor seja um mero “serviçal” das plataformas de distribuição.
— Se eu tenho a produção simplesmente contratada como prestadora de serviço, não tenho uma estruturação da cadeia produtiva do audiovisual.
Citando a experiência da União Europeia — que determina a oferta de 30% de obras audiovisuais produzidas pelos países-membros — Joelma Gonzaga defendeu a cota de catálogo para produções brasileiras,além deproeminência da divulgação dessas produções nas plataformasde VoDe medidas pluralizantes como políticas afirmativas e estímulo à regionalização.
Presidente-executivo do Brasil Audiovisual Independente (Bravi) — entidade que congrega 675 produtoras —, Mauro Garciadisse que não é mais possível protelar a atualização do marco regulatório de um setor estratégico para a nação. Ele expressou a demanda das produtoras de recolhimento da Condecine pelas plataformas deVoDe ressaltou a geração de empregos no setor.
— [É fundamental] a propriedade intelectual e a participação no direito patrimonial pelas empresas produtoras brasileiras nas suas próprias criações.
Cibele Amaral Correia, diretora Centro-Oeste da Conexão Audiovisual Norte, Nordeste e Centro-Oeste (Conne),também criticou a proeminência dos interessas das plataformas estrangeirasde VoDsobre a distribuição de conteúdo brasileiro.
—Nosso país precisa quebrar essa lógica perversa e imposta de participar dos mercados sempre na condição de fornecedor de matéria-prima.
Ela disse esperarque as novas regrasda Condecine sobre ostreamingpromovamum grande estímulo à produção brasileira não vinculada a grandes grupos econômicos, tal como ocorreu como efeito da regulamentação da TV paga,e destaquem a competitividade do Brasil como detentor de patrimônio intelectual.
Representando a Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro (API), Cintia Domit Bittar lembrou que os pontos principais da regulação doVoDsão “direitos, não favores” e manifestou apoio à proposta de investimento direto dos provedores em produção independente. Ela sugeriu que esse investimentoatinja10% da receita bruta anual da plataforma —e disse que a pluralidade levará o Brasil a ser competitivo globalmente.
— Vivemos uma crise de produção de conteúdo original no mundo inteiro. […] Falta essa competitividade de histórias originais. E onde vamos encontrar originalidade? Na diversidade, nesse grande caldo de pluralidade que este país tem.
Ex-diretora da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e advogada especialista em audiovisual, Rosana Alcântara mencionou grandes sucessos de público e crítica do cinema brasileiro, defendeuas bases da estrutura regulatória no país e disse que as operadoras internacionais dependem de parcerias firmes com produtoras nacionais.
— É preciso pertencimento, é preciso falar a língua, é preciso contar a história, é preciso que o brasileiro se veja para que tenhamos audiência.
Tiago Mafra dos Santos, diretor da Ancine,cobrou dados das plataformas de streaming para a agência reguladora ecitou o amadurecimento do setor de VoD no país no cenário geral da distribuição de conteúdo audiovisual.
— Vai ser o local de composição do imaginário cultural, o que a gente entende por Brasil. Então, é tão importante a fala sobre cotas e proeminência: é aqui onde vamos formar o que a gente pensa de sociedade brasileira.
Mariana Polidorio, diretora de Políticas Públicas da Netflix,salientou o interesse da empresa naregulamentação do streaming,desde que a lei contempletodos os diferentes agentes econômicos da indústria audiovisualeseja consistente com a oferta e a demanda de produções locais.No entanto, ela contestou o posicionamento dos outros debatedores sobre a cota de catálogo, que julga não funcionar tão bem em serviços de VoD quanto na televisão e no cinema — em seu argumento, a internet não sofre limitações de tempo e de espaço e os catálogos das plataformas de streaming são modificados dinamicamente.
— Estabelecer uma cota mínima poderia acabar estimulando uma pulverização no investimento em um número maior de obras, mas não necessariamente com uma qualidade ou um padrão que entendemos ser do interesse do cliente consumidor naquele momento — criticou.
Gerente de Relações Governamentais e Políticas Públicas do YouTube, Erika Alvarezdestacou o papel social da plataforma — aberta para publicação de vídeos por qualquer pessoa, conforme ressaltou — e a geração de resultados positivos para produtores independentes. Em sua opinião, o modelo do YouTube tem características distintas das de outras plataformas de VoD e requer tratamento diferenciado pela legislação.
— Regulamentações internacionais já em vigor reconhecem os diferentes tipos de provedores de conteúdo sob demanda com base no grau de controle sobre o seu conteúdo.
Fernando Alberto Coelho de Magalhães,diretor deprogramação econteúdo daClaro/Now,disse que a lei deve separar as obrigações para quem controla e programa o catálogo. Ele explicou que o acesso a vídeos mediante pagamento de aluguel é somente uma parte da oferta de serviços de sua operadora.
— Quem tem que cumprir obrigações, sejam de cota ou de proeminência, são as plataformas que servem para a Claro. A Claro é apenas uma vendedora dessa plataforma e não tem gestão sobre o conteúdo.
Jonas Antunes Couto, diretor jurídico-regulatório da Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA),citou o esforço do setor de livrar-se do excesso de “amarras regulatórias” e pediu transparência e cuidado tanto da parte das empresas quanto dos reguladores.
Eduardo Gomes avaliou que o projetochegará à Câmara dos Deputados com “senso de realidade” eestá “fadado ao sucesso” dada a ampla abertura do debate para todas as correntes, mas aindaconsidera ausente da discussãoa questão do combate à pirataria — problema que atinge igualmente produtoras e plataformas.
— Quando a gente fala que, nesse embate, falta uma observação objetiva e clara sobre a pirataria, é porque faz parte, pelo menos, do prejuízo.
Humberto Costa, por sua vez, salientou seu respeito à propriedade intelectual e lembrou a inclusão de artigo contra a pirataria em projeto sobre cota de TV por assinatura.
— Algumas vezes, é até importante dizer: impedir que grupos criminosos que se utilizam da prática da pirataria continuem a fazê-lo para financiar suas atividades criminosas.
Osenador destacou o consenso em torno da necessidade de regular o VoD e enalteceu o potencial econômico e cultural da produção audiovisual.
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